CEBs no Mundo Urbano: Reconstruir a “Casa”!
“O futuro não será uma nova, enorme torre de poder. Nossa esperança no futuro é a esperança nos já trilhados caminhos de casa para casa.” Esta profecia de Raimon Panikkar traduz a visão e o compromisso que surgiram do 14º intereclesial das CEBs que ocorreu em Londrina na última semana de janeiro passado. Com o lema tirado do livro de Êxodo (3,7), “Eu vi, ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo,” o encontro se debruçou sobre o tema “CEBs e desafios do mundo urbano”. Os desafios do mundo urbano capitalista hoje incluem moradia, mobilidade urbana, violência e segurança, juventudes, ecologia e sustentabilidade, trabalho, saúde e saneamento, formação e educação, arte e cultura, esporte e lazer, tecnologias de informação e comunicação e os movimentos populares e as organizações sociais, e o pluralismo (ecumenismo e diálogo inter-religioso). Ou seja, a cidade é um desafio não somente como cultura—globalizante e homogeneizante—mas também enquanto direito a ser conquistado e garantido. Daí a questão: como encaminhar a luta pelo direito dos povos à cidade? O intereclesial de Londrina foi um Kairos para as CEBs abrirem os olhos sobre o sistema mundo onde estamos inseridos. E à luz da tradição eclesial poliédrica, da memória de tantos mártires da caminhada e do rosto plural do nosso povo, o trem das CEBs pôs-se nas pegadas de Jesus e das primeiras comunidades cristãs para reconstruir trilhas alternativas rumo ao Bem Viver.
Assim, nesse processo de olhar para os múltiplos rostos da sociedade brasileira e de escutar a pluralidade de vozes em prol do direito à cidade, os clamores dos povos originários convidados para o intereclesial ressoaram alto e forte. A participação dos povos originários vindo de vários estados foi articulada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Os “Índios” não quiseram que a sua participação fosse reduzida a mera presença folclórica ou estética. Eles clamaram por sua cidadania eclesial e seu protagonismo sociopolítico em prol do direito à cidade. Esse direito à cidade—como cultura e espaço—lhes é descaradamente negado através de convicções tais como “o lugar do índio é na aldeia, no mato, não na cidade” ou “índio não pode usar celular, nem vestir roupa de marca.” A cidade que muitos povos originários, especialmente amazônicos, frequentam como espaço de encontro intercultural com a sociedade envolvente, é uma experiência de exclusão e invisibilidade social. Ou seja, a urbe, tanto como cultura—globalizante, integracionista e homogeneizante—quanto como espaço e direito lhes é violentamente negada da mesma forma que seus direitos sobre seus territórios ancestrais e à autodeterminação cultural lhes são ora negados, ora ameaçados e tirados. Além disso, eles denunciaram o proselitismo evangélico e pentecostal que está penetrando suas comunidades e demonizando suas culturas e religiosidades. E suas organizações e seus movimentos são constantemente criminalizados.
Todavia, o encontro percebeu que os clamores dos povos originários não são fatos isolados. Pelo contrário, são sinais da conjuntura atual tanto nacional quanto global.
De fato, estamos inseridos num mundo que o capitalismo financeiro hegemônico domina numa lógica de guerra constante. Conforme Pedro A. Ribeiro de Oliveira da ISER Assessoria, a guerra não é somente um negócio lucrativo, mas é também o modo de ser do capitalismo financeiro. Esta guerra chama-se desenvolvimento ou guerra contra a Mãe Terra para controlar e extrair todos os recursos naturais estratégicos possíveis, especialmente sementes, petróleo e água. São as várias guerras militares em vários lugares do planeta (guerra contra terrorismo, guerra contra as drogas, o surgimento suspeito de epidemias, etc), mas que, na realidade, servem de dispositivo de controle sociocultural e populacional. Há também a guerra ideológica ou a guerra da 4ª geração que é o controle das mídias e a disseminação de fake News, nesta era da pós-verdade.
Porém, este cenário de guerra não ocorre exclusivamente na fronteira, entre estados. É o rosto cada vez mais definidor de nossas cidades mergulhadas na violência constante e de baixa intensidade, fruto da desigualdade escandalosa que rege o mundo. As nossas cidades, de acordo com a urbanista Raquel Rolnik da USP, são configuradas dentro de uma lógica militar que favorece as empreiteiras e o capital financeiro. Daí que surgem a corrupção e a promiscuidade entre as empreiteiras e os políticos. Esse urbanismo militarizado a serviço da privatização dos espaços é uma das causas dos conflitos, da violência e e
xclusão que definem nossas cidades. Contudo, pontuou a Raquel Rolnik, chegamos a esse ponto porque as lideranças políticas que surgiram de nossas comunidades eclesiais de base se esqueceram da base. Buscou-se conquistar o Estado e consolidar o poder em vez de reconstruir e fortalecer os laços comunitários desde a base. A alternativa à privatização não é a estatização, mas a autodeterminação territorial dos povos em prol do Bem Viver. Por isso, Pedro A. Ribeiro de Oliveira convidou as CEBs a retomar sua práxis libertadora, priorizando, de um lado, os coletivos populares onde os povos possam dialogar, se articular e construir alianças em torno de causas comuns. E do outro lado, é urgente retomar o trabalho árduo de conscientização popular através da leitura popular da Bíblia, sendo que a Palavra de Deus é central à vida das comunidades e tem força para libertar.
Assim, no dia em a Igreja comemora a conversão de Paulo, a irmã Tea Frigerio nos levou a nos inspirar da práxis de Paulo e da comunidade multicultural de Antioquia. Eles souberam sair do traçado. Libertaram-se do clientelismo e apadrinhamento para inculturar o Movimento do Caminho de Jesus nas cidades do império greco-romano. E foram identificados como “cristãos.”
Paulo aprendeu na itinerância. Ele encontrou nos crucificados e crucificadas a revelação mais forte de Deus—o próprio Cristo. Com eles, fundou comunidades que fujam do modelo sinagoga e que falem do poder da vida, de ressurreição. Nascendo no meio de um poder tão hegemônico quanto o império greco-romano, as comunidades paulinas eram um grito de esperança, uma esperança que se transforma em identidade. Elas eram também comunidades alternativas, ekklesia-casa marcada pela circularidade dos bens, do poder, do saber e dos afetos. Conforme a irmã Tea, Paulo buscava antes conhecer a realidade e se enxertar na cidade. Começava a missão fora da porta da cidade, na periferia, no mundo dos pobres e descartados (mulheres, trabalhadores braçais, escravos) onde se inseria vivendo como eles, trabalhando com suas próprias mãos para se sustentar. Ele anunciava Jesus Cristo, o Crucificado ressuscitado. Assim, “marcado pelas cidades que o formaram, Paulo vive a sua vocação numa continuidade profética, mas a sua linguagem e suas opções se inserem no movimento apocalíptico com a finalidade de criar um universo de pensamento alternativo ao pensamento massificante romano... A fé apocalíptica, [fé em Deus, Senhor da história], anima a permanecer, a resistir na luta criando pensamento e práticas alternativas” (Vida Pastoral, Nº 318, p. 6). A práxis de Paulo estava profundamente enraizada na memória do Êxodo, mantida viva pelos profetas e revelada definitivamente em Jesus de Nazaré.
De fato, diz a irmã Tea, na Galileia, Jesus percebeu que a estrutura de dominação do império romano e a estrutura religiosa do judaísmo formal oficial haviam desintegrado e quebrado as relações da ‘casa’, as antigas relações de solidariedade no meio do povo. A memória histórica do êxodo, dos profetas, dos anawim, dos pobres, de Javé que desce e caminha na história do povo, levou-o a deslocar-se da vila de Nazaré e percorrer os caminhos da Galileia, da Samaria, da Judeia para reconstruir as relações da ‘casa’. Desde o ventre da mãe, Jesus coloca-se a caminho, entra nas casas, senta à mesa e transforma e reconstrói as relações: econômicas, políticas, sociais, de classe, de gênero, étnicas, religiosas. Reconstruir a casa é apressar a vinda do reino de Deus ao meio dos pobres, os excluídos da história. Os discípulos de Emaús são o ícone das primeiras comunidades: caminho, casa, mesa, missão; neles vislumbramos a semente das CEBs” (Vida Pastoral, Nº 318, p. 4).
Portanto, da práxis de Jesus e das primeiras comunidades, os participantes do 14º intereclesial recordaram a identidade das CEBs. Isto é, CEBs são “gente simples, fazendo coisas pequenas em lugares insignificantes, que consegue mudanças extraordinárias!” As CEBs precisam, como Jesus e Paulo, sair do traçado massificante e imperial—estado, sacristia, ideologia da prosperidade, busca de grandeza, etc—e a partir da base, das periferias, encaminhar a luta pelo direito à cidade, por políticas públicas urbanas inclusivas e justas. Elas revelam o rosto poliédrico da Igreja. Elas são a Igreja em saída, a resposta de Cristo aos desafios do mundo urbano. Ser uma igreja em saída significa que a pauta da missão vem não da sacristia, mas das periferias urbanas, dos clamores dos povos. Nisso, Solange Rodrigues e Sergio Coutinho incentivaram as CEBs a aprofundar o conhecimento da Doutrina Social da Igreja para se envolver assertivamente na realidade que as rodeiam. Também, convidaram as CEBs a ser de fato missionárias. Isso significa criar e multiplicar comunidades proféticas centradas na prática da leitura popular da Palavra de Deus ( por exemplo, através dos círculos bíblicos) e na celebração da gratuidade da vida e promover e acompanhar vocações. A comunidade é onde a fé e a vida, a fé e a política interagem. “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii Gaudium, 176). Tendo já, em Jesus, a “terra do céu,” com Jesus e como Jesus, devemos lutar pelo “céu da terra.” A reconstrução da “casa” a partir das bases, das periferias só pode acontecer com as comunidades assumindo o paradigma de Emaús: caminho—casa—mesa—caminho.
Entretanto, a evangelização urbana não é somente anúncio. Ele tem de ser também diálogo profético, um diálogo intercultural e inter-religioso. Ser religioso hoje significa ser inter-religioso (Peter C. Phan). A plenária que tratou do Pluralismo: ecumenismo e diálogo inter-religioso, por exemplo, observou que a prática ecumênica em muitas comunidades, ou é inexistente ou não passa de contatos esporádicos entre hierarquias eclesiais. E o diálogo inter-religioso sofre, de um lado, preconceitos advindos da intolerância e mercantilização da religião, e, do outro, a indiferença advinda da ignorância dos ensinamentos da Igreja a seu respeito. Assim, sob a assessoria de Faustino Teixeira e a pastora Romi Márcia Bencke, a plenária se comprometeu a ampliar a formação no campo do diálogo e assumir o diálogo inter-religioso, intercultural e ecumênico como orientação pastoral, espiritualidade e mística. O diálogo e a convivência com o outro já fazem parte da religião do povo. Além do mais, quem encontra e segue a Jesus é inevitavelmente impelido ao diálogo. É porque o rosto de Deus é plural que dom Pedro Casaldáliga dizia, “a cada dia eu mudo de Deus!’
Aliás, os povos originários presentes na plenária disseram se identificar e buscar aliança com as CEBs missionárias, espaços de encontro e diálogo inter-religioso/intercultural. As CEBs urbanas têm tudo a ganhar quando “primeiram” e acompanham os povos invisibilidados, explorados e cujos direitos à cidade e autodeterminação são negados pela lógica homogeneizante e excludente capitalista. Eles são hoje o rosto plural de Cristo crucificado e ressuscitado. É com eles e a partir deles, fora da cidade, que a missão de reconstruir a “casa” deve começar.
Deste modo, o trem das CEBs saiu de Londrina e retomou as trilhas do Reino de Deus, o Bem viver, mirando a próxima parada: Rondonópolis, no Mato Grosso, em 2022. Até lá, o trem das CEBs segue nas pegadas de Jesus, de Paulo e de todos os mártires da caminhada, tecendo os caminhos de casa para casa. E confiante no Senhor da história, ele vai reacendendo a chama da esperança na Jerusalém—a cidade da paz—que desce do céu, o lugar sagrado onde Deus reina no meio do seu povo. Axé. Awerê. Amém. Aleluia!