Tuesday, May 08, 2018

CEBs no Mundo Urbano: Reconstruir a “Casa”!



“O futuro não será uma nova, enorme torre de poder. Nossa esperança no futuro é a esperança nos já trilhados caminhos de casa para casa.” Esta profecia de Raimon Panikkar traduz a visão e o compromisso que surgiram do 14º intereclesial das CEBs que ocorreu em Londrina na última semana de janeiro passado. Com o lema tirado do livro de Êxodo (3,7), “Eu vi, ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo,” o encontro se debruçou sobre o tema “CEBs e desafios do mundo urbano”. Os desafios do mundo urbano capitalista hoje incluem moradia, mobilidade urbana, violência e segurança, juventudes, ecologia e sustentabilidade, trabalho, saúde e saneamento, formação e educação, arte e cultura, esporte e lazer, tecnologias de informação e comunicação e os movimentos populares e as organizações sociais, e o pluralismo (ecumenismo e diálogo inter-religioso). Ou seja, a cidade é um desafio não somente como cultura—globalizante e homogeneizante—mas também enquanto direito a ser conquistado e garantido. Daí a questão: como encaminhar a luta pelo direito dos povos à cidade? O intereclesial de Londrina foi um Kairos para as CEBs abrirem os olhos sobre o sistema mundo onde estamos inseridos. E à luz da tradição eclesial poliédrica, da memória de tantos mártires da caminhada e do rosto plural do nosso povo, o trem das CEBs pôs-se nas pegadas de Jesus e das primeiras comunidades cristãs para reconstruir trilhas alternativas rumo ao Bem Viver. 

Assim, nesse processo de olhar para os múltiplos rostos da sociedade brasileira e de escutar a pluralidade de vozes em prol do direito à cidade, os clamores dos povos originários convidados para o intereclesial ressoaram alto e forte. A participação dos povos originários vindo de vários estados foi articulada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Os “Índios” não quiseram que a sua participação fosse reduzida a mera presença folclórica ou estética. Eles clamaram por sua cidadania eclesial e seu protagonismo sociopolítico em prol do direito à cidade. Esse direito à cidade—como cultura e espaço—lhes  é descaradamente negado através de convicções tais como “o lugar do índio é na aldeia, no mato, não na cidade” ou “índio não pode usar celular, nem vestir roupa de marca.” A cidade que muitos povos originários, especialmente amazônicos, frequentam como espaço de encontro intercultural com a sociedade envolvente, é uma experiência de exclusão e invisibilidade social. Ou seja, a urbe, tanto como cultura—globalizante, integracionista e homogeneizante—quanto como espaço e direito lhes é violentamente negada da mesma forma que seus direitos sobre seus territórios ancestrais e à autodeterminação cultural lhes são ora negados, ora ameaçados e tirados. Além disso, eles denunciaram o proselitismo evangélico e pentecostal que está penetrando suas comunidades e demonizando suas culturas e religiosidades. E suas organizações e seus movimentos são constantemente criminalizados. 

Todavia, o encontro percebeu que os clamores dos povos originários não são fatos isolados. Pelo contrário, são sinais da conjuntura atual tanto nacional quanto global. 
De fato, estamos inseridos num mundo que o capitalismo financeiro hegemônico domina numa lógica de guerra constante. Conforme Pedro A. Ribeiro de Oliveira da ISER Assessoria, a guerra não é somente um negócio lucrativo, mas é também o modo de ser do capitalismo financeiro. Esta guerra chama-se desenvolvimento ou guerra contra a Mãe Terra para controlar e extrair todos os recursos naturais estratégicos possíveis, especialmente sementes, petróleo e água. São as várias guerras militares em vários lugares do planeta (guerra contra terrorismo, guerra contra as drogas, o surgimento suspeito de epidemias, etc), mas que, na realidade, servem de dispositivo de controle sociocultural e populacional. Há também a guerra ideológica ou a guerra da 4ª geração que é o controle das mídias e a disseminação de fake News, nesta era da pós-verdade. 
Porém, este cenário de guerra não ocorre exclusivamente na fronteira, entre estados. É o rosto cada vez mais definidor de nossas cidades mergulhadas na violência constante e de baixa intensidade, fruto da desigualdade escandalosa que rege o mundo. As nossas cidades, de acordo com a urbanista Raquel Rolnik da USP, são configuradas dentro de uma lógica militar que favorece as empreiteiras e o capital financeiro. Daí que surgem a corrupção e a promiscuidade entre as empreiteiras e os políticos. Esse urbanismo militarizado a serviço da privatização dos espaços é uma das causas dos conflitos, da violência e e
xclusão que definem nossas cidades. Contudo, pontuou a Raquel Rolnik, chegamos a esse ponto porque as lideranças políticas que surgiram de nossas comunidades eclesiais de base se esqueceram da base. Buscou-se conquistar o Estado e consolidar o poder em vez de reconstruir e fortalecer os laços comunitários desde a base. A alternativa à privatização não é a estatização, mas a autodeterminação territorial dos povos em prol do Bem Viver. Por isso, Pedro A. Ribeiro de Oliveira convidou as CEBs a retomar sua práxis libertadora, priorizando, de um lado, os coletivos populares onde os povos possam dialogar, se articular e construir alianças em torno de causas comuns. E do outro lado, é urgente retomar o trabalho árduo de conscientização popular através da leitura popular da Bíblia, sendo que a Palavra de Deus é central à vida das comunidades e tem força para libertar. 

Assim, no dia em a Igreja comemora a conversão de Paulo, a irmã Tea Frigerio nos levou a nos inspirar da práxis de Paulo e da comunidade multicultural de Antioquia. Eles  souberam sair do traçado. Libertaram-se do clientelismo e apadrinhamento para inculturar o Movimento do Caminho de Jesus nas cidades do império greco-romano. E foram identificados como “cristãos.” 

Paulo aprendeu na itinerância. Ele encontrou nos crucificados e crucificadas a revelação mais forte de Deus—o próprio Cristo. Com eles, fundou comunidades que fujam do modelo sinagoga e que falem do poder da vida, de ressurreição.  Nascendo no meio de um poder tão hegemônico quanto o império greco-romano, as comunidades paulinas eram um grito de esperança, uma esperança que se transforma em identidade. Elas eram também comunidades alternativas, ekklesia-casa marcada pela circularidade dos bens, do poder, do saber e dos afetos. Conforme a irmã Tea, Paulo buscava antes conhecer a realidade e se enxertar na cidade. Começava a missão fora da porta da cidade, na periferia, no mundo dos pobres e descartados (mulheres, trabalhadores braçais, escravos) onde se inseria vivendo como eles, trabalhando com suas próprias mãos para se sustentar.  Ele anunciava Jesus Cristo, o Crucificado ressuscitado. Assim, “marcado pelas cidades que o formaram, Paulo vive a sua vocação numa continuidade profética, mas a sua linguagem e suas opções se inserem no movimento apocalíptico com a finalidade de criar um universo de pensamento alternativo ao pensamento massificante romano... A fé apocalíptica, [fé em Deus, Senhor da história], anima a permanecer, a resistir na luta criando pensamento e práticas alternativas” (Vida Pastoral, Nº 318, p. 6). A práxis de Paulo estava profundamente enraizada na memória do Êxodo, mantida viva pelos profetas e revelada definitivamente em Jesus de Nazaré. 

De fato, diz a irmã Tea, na Galileia, Jesus percebeu que a estrutura de dominação do império romano e a estrutura religiosa do judaísmo formal oficial haviam desintegrado e quebrado as relações da ‘casa’, as antigas relações de solidariedade no meio do povo. A memória histórica do êxodo, dos profetas, dos anawim, dos pobres, de Javé que desce e caminha na história do povo, levou-o a deslocar-se da vila de Nazaré e percorrer os caminhos da Galileia, da Samaria, da Judeia para reconstruir as relações da ‘casa’. Desde o ventre da mãe, Jesus coloca-se a caminho, entra nas casas, senta à mesa e transforma e reconstrói as relações: econômicas, políticas, sociais, de classe, de gênero, étnicas, religiosas. Reconstruir a casa é apressar a vinda do reino de Deus ao meio dos pobres, os excluídos da história. Os discípulos de Emaús são o ícone das primeiras comunidades: caminho, casa, mesa, missão; neles vislumbramos a semente das CEBs” (Vida Pastoral, Nº 318, p. 4). 

Portanto, da práxis de Jesus e das primeiras comunidades, os participantes do 14º intereclesial recordaram a identidade das CEBs. Isto é, CEBs são “gente simples, fazendo coisas pequenas em lugares insignificantes, que consegue mudanças extraordinárias!” As CEBs precisam, como Jesus e Paulo, sair do traçado massificante e imperial—estado, sacristia, ideologia da prosperidade, busca de grandeza, etc—e a partir da base, das periferias, encaminhar a luta pelo direito à cidade, por políticas públicas urbanas inclusivas e justas. Elas revelam o rosto poliédrico da Igreja. Elas são a Igreja em saída, a resposta de Cristo aos desafios do mundo urbano. Ser uma igreja em saída significa que a pauta da missão vem não da sacristia, mas das periferias urbanas, dos clamores dos povos. Nisso, Solange Rodrigues e Sergio Coutinho incentivaram as CEBs a aprofundar o conhecimento da Doutrina Social da Igreja para se envolver assertivamente na realidade que as rodeiam. Também, convidaram as CEBs a ser de fato missionárias. Isso significa criar e multiplicar comunidades proféticas centradas na prática da leitura popular da Palavra de Deus ( por exemplo, através dos círculos bíblicos) e na celebração da gratuidade da vida e promover e acompanhar vocações. A comunidade é onde a fé e a vida, a fé e a política interagem. “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii Gaudium, 176). Tendo já, em Jesus, a “terra do céu,” com Jesus e como Jesus, devemos lutar pelo “céu da terra.” A reconstrução da “casa” a partir das bases, das periferias só pode acontecer com as comunidades assumindo o paradigma de Emaús: caminho—casa—mesa—caminho. 

Entretanto, a evangelização urbana não é somente anúncio. Ele tem de ser também diálogo profético, um diálogo intercultural e inter-religioso. Ser religioso hoje significa ser inter-religioso (Peter C. Phan). A plenária que tratou do Pluralismo: ecumenismo e diálogo inter-religioso, por exemplo, observou que a prática ecumênica em muitas comunidades, ou é inexistente ou não passa de contatos esporádicos entre hierarquias eclesiais. E o diálogo inter-religioso sofre, de um lado, preconceitos advindos da intolerância e mercantilização da religião, e, do outro, a indiferença advinda da ignorância dos ensinamentos da Igreja a seu respeito. Assim, sob a assessoria de Faustino Teixeira e a pastora Romi Márcia Bencke, a plenária se comprometeu a ampliar a formação no campo do diálogo e assumir o diálogo inter-religioso, intercultural e ecumênico como orientação pastoral, espiritualidade e mística. O diálogo e a convivência com o outro já fazem parte da religião do povo. Além do mais, quem encontra e segue a Jesus é inevitavelmente impelido ao diálogo. É porque o rosto de Deus é plural que dom Pedro Casaldáliga dizia, “a cada dia eu mudo de Deus!’ 
Aliás, os povos originários presentes na plenária disseram se identificar e buscar aliança com as CEBs missionárias, espaços de encontro e diálogo inter-religioso/intercultural. As CEBs urbanas têm tudo a ganhar quando “primeiram” e acompanham os povos invisibilidados, explorados e cujos direitos à cidade e autodeterminação são negados pela lógica homogeneizante e excludente capitalista. Eles são hoje o rosto plural de Cristo crucificado e ressuscitado. É com eles e a partir deles, fora da cidade, que a missão de reconstruir a “casa” deve começar. 


Deste modo, o trem das CEBs saiu de Londrina e retomou as trilhas do Reino de Deus, o Bem viver, mirando a próxima parada: Rondonópolis, no Mato Grosso, em 2022. Até lá, o trem das CEBs segue nas pegadas de Jesus, de Paulo e de todos os mártires da caminhada, tecendo os caminhos de casa para casa. E confiante no Senhor da história, ele vai reacendendo a chama da esperança na Jerusalém—a cidade da paz—que desce do céu, o lugar sagrado onde Deus reina no meio do seu povo. Axé. Awerê. Amém. Aleluia!

Uma Igreja amazônica, com rosto indígena!


Eis a missão de uma pastoral indigenista, conforme disse papa Francisco no encontro com vários povos amazônicos de Peru, Bolívia e Brasil, em Puerto Maldonado, Peru. Sim, papa Francisco estava novamente na América latina e a visita da vez se deu no Chile e no Peru. Desde a sua primeira viagem para o continente, durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro em 2013, papa Francisco manifestou a sua preocupação com a Amazônia e com os povos originários. A Amazônia é um laboratório eclesial e socioambiental do futuro, reconheceu o papa. Daí  nasceu um movimento em prol da Amazônia—sua biodiversidade e seus habitantes—isto é a Rede Eclesial Panamazônica (REPAM). Em Puerto Maldonado (Peru) papa Francisco iniciou oficialmente os preparativos do Sínodo sobre a Amazônia em 2019 em Roma. É assim, da preocupação e do clamor nasce um movimento; de um gesto e de um olhar de ternura surgem processos coletivos de mudança, acontecimentos históricos marcantes. 

Nós, da Pastoral indigenista da diocese de Conceição do Araguaia, encontramos muita luz, esperança e coragem a partir das palavras e dos gestos de Francisco. Desde Evangelii Gaudium, ele nos propôs o Êxodo-Emaüs como um paradigma missionário. Ou seja, o anúncio do Evangelho aos povos originários ocorre  pela escuta reverente ao clamor e à sabedoria ancestral do povo, no caminhar juntos contra tudo que ameaça suas vidas, culturas e habitats, no criar espaços de diálogo intercultural onde a autonomia e o protagonismo do povo são reconhecidos. “Cada cultura e cada cosmovisão que recebe o Evangelho enriquece a Igreja com uma visão de uma face do rosto de Cristo... Necessitamos que os povos originários moldem culturalmente as Igrejas locais amazônicas...[e assim] plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” disse Francisco. Isso foi a missão de Frei Gil e os dominicanos que fundaram a nossa diocese. Isso é nosso mandato, enquanto igreja diocesana.
E nós, da Pastoral Indigenista, continuaremos animando a todos, do Araguaia ao Xingu, para que todo batizado se envolva nesta missão. 

É nossa missão também denunciar as ameaças que os povos originários vem enfrentando com relação a seus direitos, suas culturas e seus territórios. Aqui no Brasil, nestes últimos anos, observamos o ressurgimento do racismo estrutural e institucional que quer “integrar” o índio à comunhão nacional e, combinado com o preconceito propositalmente difundida na sociedade, inspira variadas iniciativas que visam a paralisar os processos de reconhecimento dos territórios indígenas e o desmonte dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 que garantem os direitos indígenas. Todas essas ameaças encontram-se resumidas numa convicção enraizada aqui no sul do Pará: o índio é obstáculo ao progresso! Francisco denunciou a perversidade de tal convicção pecaminosa. Porque, na verdade, os povos originários são nossos contemporâneos. Eles “são um grito para a consciência de um estilo de vida que não sabe medir os custos do mesmo. Eles são memória viva da missão que Deus confiou a todos: cuidar da casa comum.” Esse posicionamento do Papa manifestou a dimensão de denúncia inerente à missão profética da Pastoral Indigenista. Não podemos nos calar diante de tantas perversidades, tantas violências causadas pela ideologia do progresso ilimitado, pelo extrativismo e desenvolvimentismo, que, na realidade, são expressões da hegemonia do capitalismo financeiro. 

Assim, ao oferecer a cada povo representado no encontro de Puerto Maldonado uma cópia de sua encíclica Laudato Si traduzida em seu idioma, papa Francisco encorajou a Igreja que primeira os povos indígenas e amazônicos e que acompanha-os na luta pela sua dignidade, pela proteção de suas culturas, seus territórios e a Pachamama (a Mãe Terra). Ele deu alento aos processos de evangelização pelo diálogo intercultural e inter-religioso já em curso que fortaleça a fraternidade humana em prol do cuidado com a nossa Casa Comum. Francisco reconheceu que a Ecologia Integral encontra respaldo na sabedoria ancestral do Sumak kawsay (Bem Viver). Como disse a Gercília Krahô, denunciando os avanços violentos contra o cerrado, a pessoas precisam perceber que “nós somos as sementes da nossa mãe Terra, as flores dos nossos rios, somos os brotos dos tempos que virão!”

Assim seguimos juntos nos passos de Francisco, co-movidos pelo espírito de Evangelii Gaudium e Laudato Si, buscando a Pyka Mejx (a Terra sem Males), marchando no movimento popular e eclesial rumo ao sínodo sobre a Amazônia para que resplandeça o rosto amazônico, indígena, Kayapó de Cristo!